quarta-feira, 9 de novembro de 2011

APRESENTAÇÃO

Este livro é uma ousadia intelectual e um instigante produto acadêmico. José Renato faz parte de um grupo de intelectuais que percebeu na contemporaneidade a complexa relação entre as áreas de saber e busca borrar as fronteiras que compartimentam a inteligibilidade do mundo. Neste sentido, o autor supõe que também a arte – como a filosofia e a ciência – é um exercício de pensamento e criação capaz de gerar diferentes formas de conhecimento. Especialmente, no caso deste livro, o autor seleciona peças de William Shakespeare para realizar a uma investigação das relações de poder, problematizando questões clássicas que envolvem a sociabilidade humana.
José Renato analisa o texto “Ricardo III”, de Shakespeare, munindo-se de efetivos recursos metodológicos, para perscrutar a área da política e oferecer ao leitor as potentes pulsações dos indivíduos que exercem atividades de governo e, também, as surdas movimentações das conjunturas relacionadas ao poder.
Este livro que o leitor tem nas mãos é marcado por uma série de encontros cognitivos. O primeiro deles é o encontro entre arte e política, à medida que José Renato realiza um esforço para retirar da obra de Shakespeare um pensamento universal que elucida questões das lutas pelo poder e delimita perspectivas para interpretar a política no seu significado polissêmico. A literatura, por exemplo, pode fornecer consistentes elementos para auxiliar na compreensão da realidade.
Pode-se dizer que o cientista social fica melhor antenado com o auxílio da arte e, nesta situação, José Renato foi atraído pela consciência da humanidade e pela descoberta do sujeito – idéias chaves presentes na obra de Shakespeare. Não bastasse o significado estético de “Ricardo III”, José Renato foi tocado pela densa dimensão humana e política marcadamente presentes na obra do dramaturgo inglês. Assim, estamos diante do segundo encontro propiciado pelo livro, qual seja, a reunião orgânica entre individuo e poder. O poder está disponível para ser exercido por alguém – pode ser Ricardo III ou outro indivíduo e, o livro nos mostra isto: determinada forma de ocupar o poder poderá levar uma sociedade ao desastre, sacrificando governantes e governados. Este segundo encontro desdobra-se numa questão polêmica da política que diz respeito à relação entre ética e governança. O presente livro mostra como a trajetória de Ricardo III esbarra sempre nesta candente relação.
Tanto quanto as dificuldades de existir (genialmente sintetizadas em “Hamlet”) são também difíceis as experiências de sociabilidade, particularmente, as políticas. Nesta direção, José Renato toma como um eixo de análise a Guerra das Duas Rosas – abordadas nas circunstâncias históricas da Inglaterra e nas encenações dramáticas dos personagens da peça. José Renato trabalha com um tema permanente e crucial em Shakespeare – a guerra, fenômeno que auxilia a compreensão da política enquanto embate constante entre grupos / facções de uma sociedade ou enquanto confronto entre reinos /nações delimitados em territórios. Ricardo III, nos mostra José Renato, perambula entre a selvageria pessoal e a brutalidade das batalhas. Indivíduos e sociedades: ambos estão em permanentes lutas. E, assim, José Renato estabelece um terceiro encontro, ao vincular indivíduo, sociedade e guerra: qualquer um destes três elementos desta equação supõe a persistência dos outros dois componentes, gerando a orgânica reciprocidade entre política e guerra.
O autor deste livro considera o fato de Shakespeare ter escrito numa época de descobrimentos de novas terras, na qual a Inglaterra se expande por vários cantos mundo, pontuando os mares com sua potência naval. Considerando-se esse momento da história inglesa e aquele terceiro encontro, o livro de José Renato abre a perspectiva para realçar uma abordagem das relações internacionais, centrada tanto na determinação da guerra quanto na emergência de conexões entre diferentes territórios no interior do mundo moderno. Afinal, as batalhas na Inglaterra, de alguma forma impactam nos países além das suas fronteiras, por exemplo, com a França, no caso de Ricardo III. José Renato percebe em Shakespeare a presença constante deste ‘ respirar do mundo’. Pode-se ressaltar que a consideração dos vínculos entre as partes do mundo para a reflexão política, está muito bem sintetizada na peça de Shakespeare, “Antonio e Cleópatra”, de 1606, na qual o dramaturgo inglês não só aproxima amantes de lugares díspares, mas também coloca em cena o mundo, por meio das relações do Império Romano com o Egito e com outras regiões do mundo de então.
José Renato, ao trazer para a Ciência Política o conhecimento produzido pela arte, amplia as fronteiras do conhecimento e agrega novas potencialidades para a área do saber. Nesta direção, o autor sistematiza uma metodologia que se fundamenta na análise interna da obra de Shakespeare, respeitando suas qualificações estéticas, e no estudo histórico, resguardando a força dos acontecimentos concretos que circundaram a figura de Ricardo III. Assim, num duplo movimento, fundamentado na análise interna e na análise externa, Jose Renato realiza aproximações e separações entre os conhecimentos produzidos pela arte e aqueles propiciados pela história. Deve-se observar que José Renato se colocou tão sèriamente esta tarefa, que em outra pesquisa, continuidade dos estudos que geraram este livro, ele analisou a obra “Ricardo II”, buscando novas pistas deixadas por Shakespeare para abrir outras inusitadas discussões sobre as disputas que envolvem o poder político.
Cabe ainda destacar neste livro, a criatividade e o rigor que embasam o esquema teórico que fundamenta a pesquisa, articulado em torno do conceito de “política como tragédia”, ou “tragédia da política”. Esta idéia que elucida a trajetória de Ricardo III aponta tanto para as possibilidades da política quanto para as suas dificuldades. Ela supõe que a política é um reino portador de carga de negatividade para o indivíduo e para o coletivo, ao mesmo tempo em que é uma esfera de viabilidade para a vida em sociedade. Assim, mesmo que a política, como invenção, venha atender às necessidades do indivíduo e da sociedades, a sua realização também pode ser danosa para estas entidades. Tais paradoxos estão sempre presentes nas peças de Shakespeare e José Renato tira bom proveito desta tensa dimensão da vida social.
Neste livro de José Renato, temos a oportunidade de ver passar em cena a realidade pessoal e social de um governante, no sentido de se dar ordem explicativa ao caos, a partir do conceito de “política como tragédia”. No caso de Shakespeare, ao se considerar sua visão cíclica de história, na civilização sucedem-se governos legítimos e governos usurpadores, legitimidade e abuso do poder, enfim, bom governo e mau governo. De forma geral, interessa a Shakespeare discutir as quebras de legitimidade e as trajetórias previsíveis e maléficas dos usurpadores. Este circuito de sucessões próprias da política expressa muito bem a tragédia da política, ainda mais ao se considerar que Shakespeare aponta para o fato da política conter em si mesma o potencial permanente de gerar a usurpação, a violência e a guerra. Toda política contem em si o embrião que pode gerar o “... horror, horror, horror”, conforme anunciado em “Macbeth”. Os momentos de paz gerados pela estabilidade política ocorrem nos frágeis governos legítimos, que estão sempre correndo o perigo de ruptura.
Assim, o conceito de “política como tragédia” – central neste livro de José Renato – aponta para a persistência das tensões tanto no cotidiano quanto na política, pois na vida e na sociedade os conflitos são agônicos. Além do mais, numa tradição que vai de Maquiavel a Nietzsche, passando por Hobbes e Marx, a política como tragédia aponta para a insuficiência das práticas políticas e clarifica que o governante (ou o indivíduo) não tem controle absoluto das suas ações. A imprevisibilidade e o descontrole fazem parte das conjunturas políticas e, também, da existência. Por isso, Ricardo III declama: “E agora o inverno de nosso desgosto...”.
Este livro de José Renato nos mostra a trágica vida política, pois qualquer sujeito que age em busca do poder político é introduzido num embate, tendo de um lado o desejo e a determinação humana e, de outro, um processo baseado na Razão de Estado, portador de uma lógica própria e imperiosa. O livro trata deste desgastante embate, no qual até hoje –queiramos ou não – estão envolvidos governantes e governados.

Miguel Chaia
São Paulo, julho de 2011

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