segunda-feira, 18 de julho de 2011

A sede de poder

A peça Ricardo III escrita por William Shakespeare entre 1592 e 1593, integra a tetralogia da Guerra das Duas Rosas, drama histórico que goza de enorme popularidade e prestígio pelo vigor poético e temática envolvente. Trata-se de um dos textos mais encenados de Shakespeare e, desde o dia 18 de maio a capital paulista abriga duas montagens simultâneas de profunda sensibilidade nos quesitos interpretação e adaptação. No teatro Ágora, a montagem de Ricardo III é dirigida por Roberto Lage com adaptação do texto por Celso Frateschi que, também, encabeça o elenco de quatorze atores. No teatro da Faap com tradução e adaptação do escritor, humorista e apresentador Jô Soares que dirige elenco de quinze atores, entre outros, Marco Ricca, Glória Menezes e Denise Fraga.
Tanto o teatro como a política são espaços nos quais somos levados a participar. Ambos exigem engajamento, envolvimento, unidade entre representantes e representados, cumplicidade entre ator (político) e público (cidadãos). William Shakespeare nos revela, através da presente obra, o diálogo entre a política e arte e, consegue manter, evidentemente, a atualidade da peça para os nossos dias.
Vivemos uma época em que as práticas e o discurso político são associados à mentira, a farsa, ao engodo de maneira descarada. A ética do indivíduo concebida e desenvolvida no Renascimento se hipertrofiou na contemporaneidade. Notam-se as conseqüências desse ultra-individualismo nas inúmeras doenças culturais que se manifestam na sociedade brasileira: cultura da esperteza, da transferência de responsabilidade, do imediatismo e do superficialismo, do negativismo e da baixa auto-estima, da vergonha da cidadania e patriotismo, do rir da própria desgraça, do desperdício, do consumismo, do tecnicismo, do corporativismo, da politicagem, do fisiologismo e do nepotismo e, por último, a cultura do conformismo. Tais comportamentos viciosos proliferam-se na esfera dos três poderes do Estado - Executivo, Legislativo e Judiciário – como se observa nos sucessivos escândalos que marcam os noticiários políticos dos últimos anos.
Sabe-se que o poder político permeia as relações humanas e sociais de forma intensa e, por vezes, devastadora. Na visão de Jean-Marie Domenach, todos somos, ao mesmo tempo, vítimas e culpados, ao estarmos imersos no mundo da política; não há saídas, nem lugares para fugir, as forças políticas opostas se confrontam e se justificam num estado de contradição impactando na sociedade.
Inúmeros pensadores, tais como: Maquiavel, Locke, Foucault, Bertrand Russel ocuparam-se em discutir as práticas coletivas dos meandros do poder e das ações sociais. Shakespeare vai além. Em Ricardo III, o poder político se apresenta sem disfarces. O bardo inglês realiza a teatralização da política expressando as tensões e paradoxos que atravessam a esfera do poder: o potencial com que a Política pode contribuir ou impedir a melhoria da condição humana. Nesse sentido, a política para Shakespeare é uma atividade tipicamente humana caracterizada pelo binômio: motivação pelo poder e a inevitabilidade do conflito. Surge daí, uma das novidades da nova perspectiva de compreensão da política, ou seja, o reconhecimento da permanência do conflito. Caracterizar, portanto, a política moderna ou contemporânea é entendê-la como jogo de forças opostas resultantes dos inconciliáveis desejos humanos. Tal "choque de interesses" evidencia o caráter trágico do jogo político: conquista, manutenção e perda do poder.
A tragédia do rei Ricardo III trata da permanente disputa do poder a qualquer preço e a falta de escrúpulos para a conquista e manutenção dele. Nela, o protagonista é um sujeito manco e corcunda, cuja aparência disforme, segundo o próprio, o impede de usufruir dos prazeres da conquista amorosa, mas não alçar vôos mais altos. No solilóquio inicial ele planeja como chegar ao poder mesmo sendo o sétimo na linha sucessória. Para alcançar seu objetivo, se utiliza de expedientes vis: conspira, manipula, explora, agrega apoios, promove alianças por conveniências momentâneas, articula adesões e coalizões, persegue e condena à morte os opositores. Movido pela sede de poder Ricardo III articula-se nas sombras, ao longo dos atos e cenas, até alcançar o triunfo almejado: o trono inglês. Para se livrar de quaisquer suspeitas de seu envolvimento nas tramas e urdiduras palacianas ele faz uso de subterfúgios conhecidíssimos: esconde-se sob o manto da religiosidade, sobriedade, humildade e outros artifícios de valores éticos e morais.
Assim o escritor inglês nos ensina, entretém e diverte. Através da arte teatral fornece elementos constitutivos do homem contemporâneo e suas relações. Essas movidas, muitas vezes, por uma ética individual refletida no uso indiscriminado de inúmeras máscaras como no jogo teatral; múltiplos disfarces agindo conforme interesses ou determinadas circunstâncias. Temos, então, o religioso, o ateu, o humilde, o simples, o culto, o ignorante, o moralista, o liberal, o caipira, o urbano, o ético, o ideológico, o pragmático, o vilão, o herói, o solidário, o benemérito, o sensível, o delicado, o paz e amor, etc. Todos, devidamente, direcionados ao público alvo a ser atingido.
Na tragédia política Ricardo III captamos essa ética sendo forjada e desenvolvida. Shakespeare nos revela essa “ética” como um instrumento de poder e nos proporciona ironicamente mergulhar em nossas consciências individuais e notar em nosso interior a presença da sede de poder: o complexo Ricardo III. O teatro moderno representado nas peças de Shakespeare, bem como o exercício da política na contemporaneidade concebe os homens como sujeitos da história impulsionados à participação - uma das exigências da democracia - não se admite o desinteresse, a passividade e fundamentalmente a despolitização. No palco da política sejamos atores e não espectadores, público da tragédia política.

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