segunda-feira, 18 de abril de 2011

O declínio da Superpotência

O declínio da Superpotência


A ONG WikiLeaks escancara dois fatos com o vazamento diplomático de documentos dos Estados Unidos.
Primeiro, uma evolução importante das práticas da diplomacia americana: a expansão das tarefas da espionagem direta. Segundo, esse acontecimento revela sinais da possível decadência norte-americana.
Na verdade, como afirma James Lindsay, vice-presidente sênior do Council on Foreign Relations: “as linhas entre a diplomacia e a espionagem sempre foram tênues”. Embora o que se constata nos documentos que “poderão ser” publicados gradualmente no WikiLeaks – os Estados Unidos estão tomando medidas para evitar maior vazamento - é que diplomatas americanos receberam orientações diretas da secretária de Estado, Hillary Clinton, e da embaixadora norte-americana na ONU, Susan Rice para coletar dados biométricos, números de cartões de crédito e até DNA de autoridades estrangeiras.
Para alguns analistas, o esforço dos Estados Unidos em grampear amigos e inimigos é uma resposta à perda gradual de poder e influência. O colunista e editor do “Guardian”, Seumas Milne, afirma que as ações “mostram como o império americano começou a perder o rumo quando o momento do mundo unipolar pós-Guerra Fria passou, Estados antigamente dependentes como a Turquia resolveram andar sozinhos e poderes regionais como a China começaram a fazer sua presença global mais sentida”.
Na mesma linha de raciocínio de Milne, o jornalista Elio Gaspari da Folha de São Paulo, em artigo publicado na Folha, 5 de dezembro p.p, opina: “A papelada do WikiLeaks relacionada com o Brasil prestou um serviço à diplomacia nacional. À primeira vista, apresentou o Itamaraty como inimigo dos Estados Unidos. Olhada de perto, documentou que o governo americano é inimigo do Itamaraty”.
Ainda segundo Gaspari, o que “incomoda o Departamento de Estado é uma diplomacia capaz de impedir que sua negocie no varejo dos ministérios assuntos que envolvem relações internacionais. Se o embaixador Sobel pudesse tratar temas da defesa só com Jobim, seria um prazer. Os diplomatas brasileiros não decidem todas as questões onde se metem, mas atrapalham. Por isso, um embaixador americano queixava-se dos “barbudinhos do Itamaraty”.
Segundo Stoessinger, na obra clássica O poder das Nações, a diplomacia pode ser definida como sendo a condução das relações internacionais por meio das negociações. É um processo através do qual as nações procuram realizar seus interesses nacionais. Nem sempre ela é um instrumento de ordem política. Seu objeto pode ser, às vezes, a intensificação de uma luta entre as nações, ou pode ser um instrumento neutro que considere a ordem como coisa irrelevante na busca dos interesses nacionais. Já dizia o primeiro-ministro austríaco Metternich: “a diplomacia é a arte de evitar os ares da vitória”.
Realmente a diplomacia é o principal instrumento da ordem política. Nas palavras do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Thomas A. Shannon: “Diplomatas devem conduzir conversas francas com seus pares e eles devem ter a garantia da confidencialidade dessas conversas. O diálogo honesto, dentro e entre governos faz parte da base das relações internacionais. Não poderíamos manter a paz, a segurança e a estabilidades internacionais sem isso”.
Ao longo da história, a diplomacia precedeu de quase dois mil anos o sistema de nações-estado. Quando lemos a Guerra do Peloponeso de Tucídides nos surpreendemos pelas visões profundas que os antigos tinham da sutil arte de negociar. Conforme diz Stoessinger: “se os gregos fizeram uma contribuição realmente importante para a essência da diplomacia – a acomodação de conflitos de interesses – a contribuição dos romanos foi igualmente importante, isto é, investir a prática da diplomacia de autoridade legal”. O Príncipe, de Maquiavel, durante o período do Renascimento, foi o mais famoso dentre muitos discursos contemporâneos sobre o tema. O advento do sistema de Estados-nações, no século XVII, introduziu a era da atividade diplomática (a velha diplomacia) e dominou o cenário até a Primeira Grande Guerra Mundial. A diplomacia tradicional, de curiosas práticas que prevaleceu durante trezentos anos – de intrigas, conspirações, libelos, perucas empoadas e “congressos valsantes” – muito raramente cometiam erros grosseiros na avaliação que faziam do poder e dos objetivos de outras nações. Subestimar ou superestimar o poder dos antagonistas era exceção, não regra.
A diplomacia tradicional, via de regra, caracterizava-se por um espírito de negociação. A característica inconfundível da velha diplomacia era o princípio do dá-cá-tomá-lá.
A velha diplomacia caiu em descrédito, com a chegada do século XX. Os idealistas acreditando que a política do poder pudesse banida da terra através do estabelecimento de uma Liga das Nações, faziam mau juízo da antiga diplomacia, toda imersa num clima de segredo, considerando-a sintoma de uma era corrupta e já morta. O novo espírito da Diplomacia moderna ficou personificado no presidente norte-americano Woodrow Wilson em seus Cartoze itens: “Convênios de paz, abertos e negociados abertamente, após os quais não haja interpretações privadas de nenhuma espécie, senão que a diplomacia se processe a portas abertas e sob as vistas do público”. A implicação disso tudo significa que os negócios da diplomacia são demasiado importantes para se restringirem apenas aos diplomatas. Os princípios do governo democrático exigem que, em matérias que afetassem os interesses vitais da nação, o público fosse mantido informado e livre para se exprimir, a cada fase do processo das negociações.
A natureza da diplomacia e do diplomata mudou, portanto, no século XX e XXI. É inegável que o moderno diplomata pouco será mais que um mensageiro encarregado de comunicar a outros as instruções recebidas de seu governo. Com freqüência, vemos nas conferências de cúpulas os chefes de Estado estabelecerem uma diplomacia presidencial, ignorando os emissários e tratando uns com os outros diretamente. Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, Stalin, Churchill, Roosevelt não se confiaram apenas unicamente ao talento de seus diplomatas. Com efeito, boa parte de suas decisões políticas mais vitais foram acertadas entre eles por telegramas e por longas conversas telefônicas pessoais.
De acordo com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: “os tempos mudam, e nós mudamos com eles. No entanto, há coisas que, por sua própria natureza, possuem uma vocação de permanência, de tradição, de contato com o passado. A diplomacia, por razões de fundo e de forma, é certamente uma delas (...) Nada disso, contudo, significa que a diplomacia esteja isenta de sofrer os efeitos da passagem do tempo. Os países mudam, as sociedades se transformam, envelhecem as visões de mundo, os diplomatas se defrontam com o desafio de responder aos novos tempos sem perder as referências tradicionais, atualizar-se sem desenraizar-se, abrir-se ao novo sem romper equilíbrios delicados, construídos ao longo de décadas, às vezes até séculos”.
Contudo, o que se verifica nessa crise diplomática global a partir do vazamento de documentos sigilosos da diplomacia dos Estados Unidos é que cada vez mais a diplomacia e a espionagem estão em uma zona cada vez mais interligada. Para Roberto Abdenur, ex-embaixador do Brasil nos EUA, é “notório que os EUA são particularmente ativos em espionagem internacional”.
De fato, coletar dados é parte intrínseca do trabalho dos diplomatas – avaliações de políticas, negociações e líderes mundiais, relatórios sobre conversas privadas com pessoas de dentro e de fora de outros governos. Nos Estados Unidos, relatórios internos dos diplomatas são um dos muitos elementos que formam as políticas de Defesa e Segurança. Disso tudo, o fato que chama atenção é o constrangimento do vazamento dessas informações de um país que gasta US$ 75 bilhões anuais num sistema de segurança que agrupa 1.200 repartições, contrata 2.000 empresas privadas e emprega mais de 1 milhão de pessoas, dos quais 854 mil têm acesso a informações privilegiadas. E tudo indica conforme “fontes oficiais”, os documentos sigilosos foram copiados por um jovem soldado num CD enquanto fingia ouvir Lady Gaga, cantarolando “Telephone”: “Pare de ligar, eu não quero falar”.
Dessa forma, as autoridades norte-americanas não deveriam responsabilizar o WikiLeaks (e seu editor Julian Assange) e os jornais que divulgaram os documentos pelos problemas da diplomacia dos EUA – que deveria zelar pelos dados sigilosos.

José Renato Ferraz da Silveira é doutor em Ciência Política pela PUC-SP e professor de Relações Internacionais da UFSM. jreferraz@hotmail.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário