sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Doutrina de choque, dessa vez nos EUA

Eis uma ideia: talvez Madison, Wisconsin, afinal não seja o Cairo. Talvez seja Bagdá -- especificamente, Bagdá em 2003, quando o governo Bush colocou o Iraque sob o controle de subordinados selecionados por sua lealdade e confiabilidade política, e não pela experiência e competência.

Como muitos leitores talvez recordem, os resultados foram espetaculares -- no mau sentido. Em lugar de concentrarem suas atenções nos problemas urgentes de uma economia e sociedade dilaceradas, que não demorariam a decair a uma sangrenta guerra civil, os indicados de Bush tinham a obsessão de impor uma visão ideológica conservadora. De fato, com os saqueadores ainda no controle das ruas de Bagdá, L. Paul Bremer, o vice-rei norte-americano no Iraque, declarou em entrevista ao jornal "Washington Post" que uma de suas maiores prioridades era "corporatizar e privatizar empresas estatais" -- nas palavras de Bremer, não do repórter- e "ensinar as pessoas a deixar de lado a ideia de que o Estado sustenta tudo".

A história da Autoridade Provisória da Coalizão e sua obsessão por privatizações serviu como peça central a "The Shock Doctrine", um best seller de Naomi Klein, e a autora argumentava no livro que a situação era parte de num padrão mais amplo. Desde o Chile nos anos 70, ela sugeria, ideólogos de direita vêm explorando crises para promover uma agenda que nada tem a ver com a solução dos problemas, e tudo com a imposição de sua visão quanto a uma sociedade mais áspera, mais desigual e menos democrática.

O que nos conduz a Wisconsin em 2011, onde a doutrina do choque está sendo usada em sua plenitude.

Nas últimas semanas, o Wisconsin vem sendo cenário de grandes manifestações contra a proposta orçamentária do governador, que negaria aos funcionários públicos estaduais o direito de negociar salários e contratos de trabalho coletivamente. O governador Scott Walker alega que precisa aprovar seu projeto para poder enfrentar os problemas fiscais do Estado. Mas seu ataque aos sindicatos nada tem a ver com o orçamento. Na verdade, os sindicatos já indicaram que estão dispostos a realizar concessões financeiras substanciais -- uma oferta que o governador rejeitou.

O que está acontecendo no Wisconsin é, na verdade, uma manobra de força -- uma tentativa de explorar a crise fiscal a fim de destruir o último grande contrapeso ao poder político das grandes empresas e dos norte-americanos ricos. E essa campanha vai além da destruição dos sindicatos; a proposta tem 144 páginas de extensão, e há algumas cláusulas extraordinárias ocultas nas profundezas do texto.

Por exemplo, a proposta inclui cláusulas que permitiriam que funcionários estaduais apontados pelo governador promovessem cortes abrangentes nos serviços de saúde fornecidos a famílias de baixa renda sem que isso precisasse passar pelo processo legislativo normal.

E há também o seguinte: "Não obstante o disposto em ss. 13.48 [14] [am] e 16.705 [1], o departamento poderá vender qualquer instalação de aquecimento, refrigeração ou geração de energia controlada pelo Estado, ou fechar contrato com uma empresa privada para a operação dessa instalação, com ou sem concorrência, pelo montante que o departamento determine melhor servir ao interesse do Estado. Não obstante o disposto em ss. 196.49 e 196.80, não será necessária aprovação ou certificação pela comissão de serviço público para que uma empresa pública de infra-estrutura adquira, ou feche contrato para a operação de, instalações desse tipo, e quaisquer aquisições dessa ordem serão consideradas como de interesse público e como enquadradas aos critérios de certificação de um projeto nos termos de s. 196.49 [3] [b]".

Do que se trata? O Estado de Wisconsin controla algumas instalações que oferecem serviços de aquecimento, refrigeração e energia para organizações operadas pelo Estado (por exemplo a Universidade de Wisconsin). O texto na prática permitiria que o governo estadual privatizasse qualquer uma ou todas essas instalações sem consultar pessoa alguma. Não só isso como o governador poderia vendê-las sem promover concorrência, a quem quer que escolha. E perceba que qualquer venda como essa seria considerada, por definição como "de interesse público".

Se isso lhe parece um esquema perfeito para o compadrio e a realização de lucros indevidos -- lembra dos bilhões desaparecidos no Iraque? --, bem, você não está sozinho. De fato, muita gente em Wisconsin tem fortes suspeitas, o que levou a Koch Industries, controlada pelos irmãos bilionários que desempenham papel central nos esforços de Walker para destruir os sindicatos, a negar publicamente qualquer interesse pela compra desse tipo de autarquia. Você acredita?

A boa notícia vinda de Wisconsin é que a indignação pública cada vez mais intensa -- ajudada pelas manobras dos democratas no Senado estadual, que se ausentaram das deliberações para negar quorum aos republicanos -- está pelo menos atrasando a trapaça. Se a ideia de Walker era pressionar e aprovar a proposta antes que alguém percebesse seus verdadeiros objetivos, o plano fracassou. E os acontecimentos em Wisconsin podem fazer com que outros governadores republicanos hesitem; de fato, alguns deles parecem estar recuando de posturas semelhantes.

Mas não espere que Walker ou o restante de seu partido mude de objetivo. Destruir sindicatos e promover privatização continuam a ser prioridades republicanas, e o partido manterá seus esforços para contrabandear essas prioridades, camufladas como medidas de equilíbrio orçamentário.


Paul Krugman, 57 anos, é prêmio Nobel de Economia (2008), colunista do "The New York Times" e professor na Universidade Princeton (EUA). Um dos mais renomados economistas da atualidade, é autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos publicados em jornais especializados.

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